"Primum non nocere" é princípio básico da ética médica, segundo o
qual o médico deve avaliar, antes de tomar qualquer atitude, se sua ação
poderá prejudicar mais o doente do que se nada fosse feito. Tal
ensinamento aplica-se a várias outras áreas, inclusive à economia.
Infelizmente, não vem encontrando o devido eco na condução da política
econômica brasileira recente. A desaceleração mais forte da economia vem
suscitando uma sucessão de "pacotes" de estímulo econômicos, cada vez
mais patéticos.
Tais pacotes advêm de um diagnóstico comum: falta demanda. E
prescrevem doses crescentes dos mesmos remédios: subsídios ao crédito e
desonerações tributárias, sempre focalizados em poucos produtos e
setores, escolhidos por critérios obscuros. Frequentemente, têm sido
também criadas barreiras a produtos importados que competem com a
produção de setores com lobby mais forte em Brasília, notadamente o
automobilístico.
De fato, a economia brasileira ora passa por um momento de
arrefecimento da demanda, e é função da política econômica suavizar, na
medida do possível, o ciclo econômico. No entanto, corrigir as raras e
breves ocasiões de falta de demanda não é problema que tenha ameaçado o
desempenho da economia brasileira, muito pelo contrário. Dificuldades
pelo lado da oferta, essas, sim, constituem gargalos estruturais que
vêm, há muito, prejudicando o crescimento econômico. E, com frequência,
os pacotes de estímulo à demanda, em vez de destravar a oferta e ajudar
no crescimento da produtividade da economia, representam aumento do
custo Brasil para setores não beneficiados pelas medidas governamentais.
A política econômica recente vem ficando cada vez mais parecida com
aquelas que vigoraram no período pré-Real, quando as regras eram mudadas
com grande frequência. Isso se choca frontalmente com os preceitos da
teoria econômica moderna, que têm enfatizado, cada vez mais, a
importância da manutenção de incentivos propícios ao crescimento
econômico e à prosperidade. Incentivos que só podem surtir efeito se
baseados em regras e instituições estáveis ao longo do tempo. A
instabilidade advinda da sucessão de pacotes prejudica o investimento e o
crescimento.
Um empresário racional que se defronte com dificuldades, em vez de se
esforçar para reduzir custos ou investir para aumentar a produtividade,
logo perceberá ser mais lucrativo juntar-se a um lobby para extrair
benesses em Brasília ou na avenida Chile. Não chega a ser surpreendente
que isso venha ocorrendo.
Confesso que até mesmo eu acho monótona a repetição do argumento de
que as reformas estruturais (previdenciária, tributária, trabalhista)
precisam voltar a ser prioridade. Mas nem mesmo o modesto projeto de
limitar o crescimento real da folha salarial do setor público sai da
gaveta do deputado relator, que alega que não o fará até a presidente
afirmar que a medida é, de fato, prioritária.
Há indicações cada vez mais evidentes de que a política econômica
carece de visão coerente de longo prazo. Por exemplo, ao justificar as
decisões do recente pacote, o ministro do Desenvolvimento declarou que
"o governo está conjugando medidas estruturais, como é o caso da redução
sistemática da taxa de juros, com medidas conjunturais..." (Valor Econômico,
23/5/2012, pág. A3). Tal declaração contém dupla impropriedade.
Primeiro, porque atribui a redução dos juros à suposta agenda de medidas
estruturais do governo, enquanto deveria ser responsabilidade autônoma
do BC, a se crer nas declarações da presidente Dilma e do presidente do
BC. Segundo, e mais importante, porque alterações da taxa de juros são,
por definição, medidas anticíclicas e, portanto, conjunturais.
Estruturais seriam medidas que permitissem ao BC reduzir os juros sem
colocar em risco o controle inflacionário, como um verdadeiro ajuste
fiscal, que arrefecesse a expansão do gasto corrente, e estimulasse o
investimento público. Mas estas, o governo parece desinteressado ou
incapaz de promover.
Como disse um amigo, a estratégia econômica atual assemelha-se cada
vez mais à do enxadrista improvisado: "Peça pra frente, que xadrez é
sorte"!
Márcio G. P. Garcia, PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio.
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